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Urbanização costeira, sustentabilidade e resiliência climática

por Aline Sbizera Martinez


Você já se perguntou como a urbanização está mudando a cara do nosso litoral e quais são as consequências para o meio ambiente, a sustentabilidade e a resiliência climática? Bem, um estudo recente, liderado por mim em colaboração com outros dois pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), revelou algumas curiosidades e preocupações sobre esse tema. Antes de entrarmos nos detalhes do nosso estudo, vamos contextualizar o que está acontecendo com o crescimento das cidades. Assim, poderemos guiar você através dos achados do estudo e mostrar a conexão com a sustentabilidade e a resiliência climática. Vamos lá!


O Crescimento Populacional e a Expansão Urbana


Atualmente, a população humana mundial ultrapassou os 8 bilhões de pessoas, de acordo com estimativas recentes da Organização das Nações Unidas (ONU). Uma das características mais notáveis desse crescimento populacional é a urbanização acelerada. As cidades estão crescendo a um ritmo sem precedentes, com uma taxa de urbanização que continua a subir ano após ano. Estima-se que cerca de 55% da população mundial viva em áreas urbanas, e esse número deve aumentar para quase 70% até 2050. E adivinha onde é que as cidades estão crescendo mais rapidamente? Na região costeira, principalmente de países em desenvolvimento, como é o caso do Brasil.

Guarujá (SP). Foto: Aline Martinez

No Brasil, cerca de um quarto da população (aproximadamente 48 milhões de pessoas) vive nos municípios litorâneos, que representam apenas 5% do território nacional. Se considerarmos as pessoas que vivem a menos de 150 km da costa, esse número supera a metade da população brasileira (54,8%). Isso significa que a maior parte da população vive nas cidades costeiras ou próximas ao litoral. Historicamente, o processo de crescimento das cidades no Brasil, e em muitos países em desenvolvimento, ocorreu de forma desordenada, com grandes adensamentos em áreas de vulnerabilidade. Essas regiões vulneráveis enfrentam impactos climáticos exacerbados tanto no presente quanto em projeções de futuro, pois frequentemente estão situadas em locais de alto risco, como planícies (áreas de baixa elevação) ou encostas íngremes. Em resumo, estamos crescendo de forma acelerada, com boa parte da população ocupando áreas de maior vulnerabilidade.


Desafios Frente às Mudanças Climáticas


Cidades no Brasil e ao redor do mundo estão enfrentando crescentes desafios de resiliência, à medida que riscos climáticos se intensificam juntamente com a urbanização, a perda de biodiversidade e a perda de serviços ecossistêmicos, aumentando a pobreza e as desigualdades socioeconômicas. Eventos extremos como chuvas intensas, inundações, ondas de calor e secas ameaçam o bem-estar e a vida da população que reside no litoral, além de estarem causando perdas econômicas significativas e instabilidade social. No Brasil, boa parte da população costeira e das comunidades locais dependem da pesca e do turismo para sua subsistência. Com o crescimento das cidades, esses setores estão enfrentando intensificação dos conflitos de uso. Além disso, o crescimento não planejado vem causando diversos impactos ambientais, com potenciais consequências sociais e econômicas significativas, colocando em risco a própria capacidade das cidades de se protegerem contra eventos climáticos.


Endurecimento Costeiro

Ilhabela (SP). Foto: Aline Martinez

Com o crescimento das cidades litorâneas, estamos acelerando o processo de endurecimento costeiro. Mas o que é "endurecimento costeiro"? É quando construímos estruturas rígidas como por exemplo, muros, píeres, e enrocamentos na interface entre a terra e o mar para proteger as cidades contra ressacas e inundações e facilitar nosso acesso ao mar. Esta é uma atividade antiga, milenar, cujos primeiros registros de construção dessas estruturas datam de 2.000 a.C. Essas construções começaram há milhares de anos, mas vem se intensificando recentemente devido às mudanças climáticas, devido à intensificação de tempestades e ressacas que vem provocando diversos danos à infraestrutura urbana. Países como Estados Unidos, Austrália e nações europeias já enfrentam uma situação onde mais da metade de suas costas são artificiais. 


Impactos Ambientais e Socioeconômicos


Toda essa construção não vem sem impactos. O endurecimento costeiro vem causando a perda e modificação de habitats naturais, como manguezais e praias, e consequentemente diminuindo a biodiversidade local. Essas infraestruturas oferecem superfícies menos complexas que ambientes naturais (por exemplo, costões rochosos), o que impede que muitas espécies nativas ocupem estes novos habitats. Ao mesmo tempo, essas estruturas artificiais facilitam as invasões por espécies exóticas, que se adaptam mais facilmente a esses ambientes menos complexos.


Paraty (RJ). Foto: Aline Martinez

Essas construções atuam tanto como barreiras físicas para muitas espécies que habitam fundos moles (areia e lama) e precisam migrar para se reproduzir, quanto como trampolins para aquelas espécies que necessitam de superfícies rígidas para se dispersarem (como muitas espécies exóticas). A longo prazo, a perda da biodiversidade ocasionada pelo endurecimento costeiro pode afetar a pesca, a qualidade da água e até mesmo o turismo, impactando a economia local e o bem-estar das comunidades. Imagine perder aquele cantinho da praia que você adora porque virou um paredão de concreto!


Pensando nessa situação, ficamos curiosos em entender como está o cenário atual de endurecimento costeiro no Brasil para poder pensar em soluções que evitem danos sociais, econômicos e ambientais num futuro próximo. Considerando a falta desse tipo de informação, começamos a fazer o mapeamento do nosso litoral, iniciando pelo litoral paulista. Mapeamos toda a linha de costa, medindo a extensão total das construções na linha d'água. Descobrimos que, atualmente, mais de 240 km da linha de costa do litoral paulista foram "endurecidos". Isso não é pouca coisa!


Embora essas construções sejam tradicionalmente utilizadas para lidar com as tempestades do mar, geralmente resolvem o problema apenas a curto prazo e acabam aumentando a vulnerabilidade das cidades. Áreas urbanas com habitats naturais em frente ao mar, como manguezais, bancos de ostras, recifes, dunas e restingas, estão naturalmente protegidas, pois esses habitats absorvem de forma muito mais eficiente os impactos das ondas e as forças das marés.


Áreas Vulneráveis e Sustentabilidade


Neste estudo que realizamos, também mapeamos áreas que são potencialmente vulneráveis a eventos climáticos. Saber onde estão essas áreas ajuda na criação de políticas públicas que promovam a sustentabilidade e a resiliência climática. Afinal, ninguém quer ver sua casa ou seu local favorito de férias sendo destruído por uma tempestade.


Medimos a extensão de áreas construídas em terrenos de baixa elevação (até 5 metros acima do nível do mar), não na linha d'água, mas próximas ao mar, dentro de um raio de 100 metros. Descobrimos que quase 20% do litoral paulista, o que equivale a 300 km de costa, apresenta áreas construídas (bairros, vilas, praças, rodovias) próximas ao mar ou estuários. Isso significa que essas áreas urbanas de baixa elevação estão potencialmente sob risco de inundações, erosão ou destruição por tempestades e ressacas. Por isso, é crucial que haja um planejamento urbano que leve em conta essas vulnerabilidades, promovendo a sustentabilidade e a proteção das cidades costeiras.


O Futuro Está em Olhar Para a Natureza


A nossa pesquisa destaca a necessidade urgente de planejamento urbano que considere a sustentabilidade e a resiliência climática. Soluções baseadas na Natureza (SBN), como a restauração de manguezais e outros habitats costeiros degradados no ambiente urbano, podem ser a chave para proteger nossas cidades e garantir que possamos continuar desfrutando do litoral por muitos anos. Em áreas já altamente urbanizadas, onde não é possível restaurar ambientes naturais, precisamos pensar em SBN que possam adaptar o ambiente urbano para revitalizar os habitats marinhos e terrestres, e facilitar a recuperação da biodiversidade nativa. Implementar essas estratégias pode não só reduzir os danos futuros, mas também melhorar a qualidade de vida das pessoas que vivem nessas áreas, criando ambientes mais seguros e agradáveis para todos. As cidades precisam adotar práticas que equilibrem o desenvolvimento com a conservação ambiental para enfrentar os desafios impostos pelas mudanças climáticas.

Ilhabela (SP). Foto: Aline Martinez

Neste sentido, os Terrenos de Marinha e a Lei do Mar (Projeto de Lei nº 6.969/2013) são super importantes para proteger nossas cidades costeiras. Os Terrenos de Marinha, que se estendem 33 metros terra adentro a partir da linha da maré alta, funcionam como uma zona de proteção natural contra desenvolvimentos desordenados, ajudando a mitigar os danos causados pelas mudanças climáticas, como erosão e inundações. Eles são essenciais para a sustentabilidade dos recursos naturais e serviços ambientais, como a regulação climática, pesca e turismo, que são vitais para a economia local. A Lei do Mar propõe melhorias na gestão das regiões costeiras e marinhas, apoiando a governança e ajudando a prevenir desastres naturais. Preservar e usar esses territórios de forma responsável é fundamental para garantir a resiliência e a sustentabilidade das cidades costeiras brasileiras frente aos desafios climáticos e urbanísticos atuais e futuros.


Bom, da próxima vez que você estiver curtindo uma praia no litoral brasileiro, lembre-se das complexidades e desafios que vêm com a urbanização e pense em como podemos fazer nossa parte para proteger esse paraíso costeiro e nos proteger das mudanças do clima!


Se você tiver interesse em saber mais detalhes deste estudo que fizemos no litoral paulista, fizemos um documento em português onde reunimos os principais achados do artigo científico gerado dessa pesquisa: É só clicar aqui.


Referências:
  • Airoldi L, Beck MW, Firth LB, Bugnot AB, Steinberg PD, Dafforn KA. Emerging solutions to return nature to the urban ocean. Annual Review of Marine Science 2020.

  • Airoldi L, Turon X, Perkol-Finkel S, Rius M. Corridors for aliens but not for natives: effects of marine urban sprawl at a regional scale. Diversity and Distributions 2015; 21: 755-768.

  • Bugnot AB, Mayer-Pinto M, Airoldi L, Heery EC, Johnston EL, Critchley LP, et al. Current and projected global extent of marine built structures. Nature Sustainability 2020.

  • Crain CM, Halpern BS, Beck MW, Kappel CV. Understanding and managing human threats to the coastal marine environment. In: Ostfeld RSSWH, editor. Year in Ecology and Conservation Biology 2009. 1162, 2009, pp. 39-62.

  • Firth LB, Knights AM, Bridger D, Evans AJ, Mieszkowska N, Moore PJ, et al. Ocean sprawl: Challenges and opportunities for biodiversity management in a changing world. In: Hughes RN, Hughes DJ, Smith IP, Dale AC, editors. Oceanography and Marine Biology: An Annual Review, Vol 54. 54, 2016, pp. 193-269.

  • Gittman RK, Scyphers SB, Smith CS, Neylan IP, Grabowski JH. Ecological consequences of shoreline hardening: A meta-analysis. BioScience 2016; 66: 763-773.

  • IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Demográfico 2022. https://censo2022.ibge.gov.br/panorama/ (Last acess: August 2023), 2023.

  • Moraes CAR. Contribuição para a gestão da zona costeira do Brasil: Elementos para uma geografia do litoral brasileiro. São Paulo: Annablume, 2007.

  • Pardal A, Christofoletti RA, Martinez AS. Urbanisation on the coastline of the most populous and developed state of Brazil: The extent of coastal hardening and occupations in low-elevation zones. Anthropocene Coasts: Special Collection “Coastal Hazard Risk in the Anthropocene” 2024; 7: 15.

  • United Nations Department of Economic and Social Affairs, Population Division (2022). World Population Prospects 2022: Summary of Results. UN DESA/POP/2022/TR/NO. 3.


Sobre a autora:

Sou oceanógrafa formada pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG), com doutorado em ecologia pela Universidade de Sydney (USYD, Austrália). Investigo fatores naturais e antrópicos que influenciam a dinâmica de comunidades e o funcionamento de ecossistemas bentônicos marinhos. O propósito de minha pesquisa é desenvolver soluções baseadas na natureza para a conservação dos ecossistemas e sustentabilidade ambiental. Na minha pesquisa, utilizo métodos experimentais e modelagem para testar teorias ecológicas sobre a distribuição de espécies, uso de habitats e respostas ecológicas funcionais para prover evidências robustas que sirvam de base para o manejo ambiental. Já desenvolvi pesquisas em ambientes recifais, costões subaquáticos e do entremarés, além de atuar em projetos de impacto ambiental e planos de manejo. Atualmente, sou pesquisadora da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), onde investigo o impacto de urbanização costeira (estruturas artificiais) e de ecoengenharia marinha na biodiversidade e funcionamento ecológico de comunidades bentônicas marinhas.

Instagram: @martinez_ecology

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