por Elisa Homem de Mello
Para que todes saibam: Não conhecemos nem 10% do oceano!
Exatamente por isso, falar sobre sua preservação é chave para não piorarmos (mais) o estrago que já causamos na Natureza.
Depois da gente viver um momento em que sabíamos que colheríamos, não os frutos, mas as desgraças advindas dos desmatamentos da Mata Atlântica, iniciado no século XVII, seguido da Floresta de Araucária e do Cerrado, até chegarmos ao "massacre da serra elétrica" na Amazônia, estamos num período que me parece de despertar da consciência para a importância de se manter um oceano saudável.
No Santos Summit, que rolou em março passado, durante os dias 7 a 9, no Parque Tecnológico de Santos/SP - a maior cidade portuária da América Latina - pude perceber que estamos tentando um realinhamento da humanidade com o mundo natural. Passados 3 anos do início da Década do Oceano, estamos no caminho certo para compreender que sem ecossistemas saudáveis, não iremos a parte alguma.
Se somos um nada entre os atuais 8 bilhões de pessoas no planeta, que dirá em comparação ao Universo. Então, de hoje em diante, temos que ficar de olho quando aparecer escrito "no turning point", que na minha livre tradução quer dizer ALERTA MÁXIMO!!! Mas na língua do Universo quer dizer que dos 9 pontos de inflexão da Terra, já atingimos 6!
Some-se a isso um cenário geopolítico que teve sua mais recente guinada em 2022, com a invasão da Rússia na Ucrânia, e mudou toda a forma como pensávamos o processo de descarbonização, trazendo uma mudança de paradigma de transição para segurança energética. Na palestra "Geopolítica, Direito Marítimo e Impacto Climático", o cientista político e professor de Relações Internacionais da FGV, Eduardo J. Viola, relembra o Relatório do IPCC de 2014, cuja previsão de aumento da temperatura média global para 1,5ºC deveria ser atingida apenas em meados da década de 2030. Entretanto, no ano passado, batemos a casa dos 1,54ºC. Uma parte destas emissões globais de GEE foi sequestrada pelo oceano, ou seja, se não fosse pelo oceano, o aquecimento global teria sido mais rápido e intenso ainda.
Claro que há um preço alto para o oceano nessa história toda de sequestro de emissões, que é o fato deste processo acidificar as águas dos mares, causando impacto deletério na formação do cálcio (Ca) na vida marinha e atingindo diretamente os corais. Hoje, a acidificação e poluição - que um dia foi por petróleo (nas costas do mundo) e, há algumas décadas, também é por um de seus derivados, o plástico (micro e nano) - causam danos na cadeia marinha e em nós.
É importante que se diga que o desmatamento (mudança do uso do solo) da Amazônia contribui com 85% da responsabilidade do Brasil para com o aquecimento global, medido entre os anos de 1850 até 2020. Mas a Mata Atlântica e toda a costa do país, o novo formato urbanístico do litoral e toda a falta de planejamento de desenvolvimento estratégico da região costeira (instrumento importante para o planejamento espacial marinho), passando por todas as atividades que acontecem no mar e além dele, são motivos mais que suficientes para falarmos de oceano.
Aliás, a questão dos limites do mar territorial ganhou maior importância à medida que foi crescendo a possibilidade de utilização do solo e do subsolo marítimo. O Brasil (e tantos outros países mundo afora) defendeu o limite de 200 milhas para o mar territorial, tomando, em 1970, a decisão unilateral de estender seu mar territorial àquela distância, e este é um dos temas mais difíceis de ser tratado, em termos geopolíticos. Segundo o professor da Faculdade de Direito/USP e especialista em Direito do Mar, Rodrigo More, a grande preocupação durante reuniões bilaterais é sempre sobre geopolítica, mais especificamente sobre qual influência os países procuram exercer sobre outros países a partir das suas perspectivas e objetivos territoriais.
No mundo da oceanopolítica, que estuda como o oceano influencia decisões e/ou interesses de países e como os países realizam estes interesses no plano internacional, há um grande paradoxo: a corrida pelo fundo do mar e seus recursos, principalmente minerais - necessários para construir, dentre outras coisas, equipamentos que emitam menos carbono (C) - é também um aumento da própria mineração em si. Ironicamente, para se ter menos emissão de GEE, será preciso mais mineração!
O Santos Summit foi uma oportunidade incrível para pensarmos sobre todas estas questões. Para os amantes do mar, para tomadores de decisões, para jovens aprendizes, para empreendedores da economia azul e para desenvolver ainda mais a engenharia azul.
Foi o palco para apresentação de projetos como o da colega de Liga* e uma das coordenadoras do GT Década, Aline Sbizera Martinez (Unifesp e SEAdapta), que em conjunto com o professor Rafael Giuliano Pileggi (Departartamento de Engenharia de Construção Civil da Escola Politécnica/USP), estudam formas baseadas na natureza para conter a desgovernança urbana, tentando formas de mitigar e/ou conter o processo de Endurecimento Costeiro, que é como chamamos as construção de estruturas rígidas na interface entre a terra e o mar com o propósito de acomodar as necessidades da sociedade e proteger cidades costeiras. Neste processo, muitas áreas ocupadas por ambientes inconsolidados (p. ex. fundos arenosos), ou “moles”, são artificialmente endurecidas. Na palestra de "Ecoengenharia e Adaptação Climática", o estudo realizado pela Aline sobre Mapeamento da Extensão Endurecida (outro instrumento importante para o PEM), no litoral de São Paulo, revelou que 244 km da linha de costa está endurecida com infraestrutura cinza, que são as estruturas físicas tradicionalmente construídas pelo ser humano para acomodar somente necessidades sociais e econômicas, sem considerar o aspecto ambiental. Essas estruturas geralmente são feitas de materiais como concreto, aço ou outros elementos artificiais (p.ex. quebra-mares, muros de contenção e diques). O hotspot, por assim dizer, de infraestrutura cinza localiza-se justamente na Baixada Santista. Segundo Aline, o conhecimento científico sobre os impactos destas construções no campo ecológico é relativamente recente (pesquisadores ao redor do mundo começaram a concentrar suas investigações neste tema a partir dos anos 2000), mas já é possível afirmar que neste processo de construção há fragmentação e perda de habitat, perda de biodiversidade local e aumento de espécies invasoras. As estruturas construídas geralmente não favorecem espécies nativas, ao contrário, promovem a invasão de espécies exóticas. Para ela, é preciso começar a pensar em como iremos adaptar e o que vamos fazer dentro deste cenário, não apenas para acomodar a sociedade, mas pensando também na questão ambiental.
Por isso é que se diz que a ecoengenharia azul é uma vertente das soluções baseadas na natureza, pois combina princípios da engenharia com a ecologia para reduzir os impactos negativos no meio ambiente, acomodando tanto necessidades sociais e econômicas, quanto ambientais. É uma forma de pensar a adaptação dentro das áreas urbanas e o que pode ser feito com estas construções já existentes, a fim de revitalizar a biota local.
Não há atividade marinha sem que haja conexão com a terra, com a zona costeira. Por isso, estou certa de que boa gestão, bem-estar e economia só podem ser estrategicamente pensados e traçados se este processo estiver em equilíbrio. Ou como bem disse a Mari Andrade, da Secretaria Executiva da Liga, durante a palestra "Economia Azul Sustentável e o Potencial Brasileiro para Investimentos", apesar do norte global ter um debate mais avançado sobre o tema, em todos os espaços de discussões sobre o clima, é possível ver a economia azul cada vez mais presente. Mas ainda é difícil falar dela. A dificuldade de falar do oceano existe porque as variantes sobre o tema são muitas, porque há diferentes atores, com diferentes visões e objetivos. Todas as decisões influenciam, direta ou indiretamente, em como vamos cuidar do nosso oceano.
E foi por isso que chamei este congresso de o Congresso do Biocentrismo. De alguma forma, estamos começando a reconhecer a magnitude sagrada do nosso planeta vivo! Se a gente quer comercializar o que há lá embaixo, bem. Mas que seja pautado com base no respeito e na igualdade entre todos os seres, inclusive a pulsante Gaia.
O Banco Nacional de Desenvolvimento - BNDES, por exemplo, acredita que falar do azul é falar de esperança, uma vez que retoricamente falando o oceano é um oceano de oportunidades… principalmente econômicas, mas devem ser também oportunidades inclusivas e socialmente agregadoras. Para Luiz Antônio Pazos, administrador do Departamento de Meio Ambiente do Banco, o que vem sendo chamado de "BNDES azul" é muito mais que uma frente de linha de crédito, é uma mudança de paradigma para dentro do banco. "O cliente quer saber que espaço azul é esse? É um espaço privilegiado pois (o oceano) é fornecedor de serviços ecossistêmicos". Mas ele alerta: "é preciso uso racional deste espaço para que estes serviços ecossistêmicos não venham a se exaurir".
Se por um lado, o banco assume uma posição de parceria com a natureza perante o público, por outro, assume que precisa entender como todas estas ações acontecem em tempo e espaço. As áreas já financiadas pelo BNDES (tais como portos, construção naval, turismo e indústria da pesca) fazem parte da estratégia de ações setoriais. Para entendê-las como um todo, o banco desenvolveu o primeiro projeto piloto do PEM - Planejamento Espacial Marinho, cujo início foi na região sul do Brasil. Para 2024, espera-se a conclusão até o Nordeste, e até 2030, que todo o país esteja mapeado pelo PEM. "Que possamos reconhecer a região marinha e costeira brasileira para uso racional deste espaço e para entender como estas ações interagem entre tempo/espaço, que possamos desenvolver indicadores, privilegiando serviços ecossistêmicos e (analisando) como se conversam". Sem dúvida, é também uma pegada de inclusão sócio-produtiva, de soluções que tentam evitar os problemas advindos das mudanças climáticas e, sempre que possível, gerando respostas baseadas na natureza.
"Azul parte do pressuposto que conserva os serviços ecossistêmicos, que ajuda no combate ao enfrentamento às questões das mudanças climáticas, do contrário não é azul. Que fala, não apenas de economia marinha, mas de uma economia totalmente sustentável, socialmente justa e inclusiva, se não, não é azul".
É o que afirma Marinez Scherer, do Depto de Oceano e Gestão Costeira, integrado à Secretaria de Mudanças Climáticas. O Ministério do Meio Ambiente mostra total apoio ao PEM. "Sem ele (o PEM), nossa economia não será azul", afirma Scherer.
Desde a criação de indicadores com foco no ser humano, à mentoria sobre o enfrentamento às mudanças climáticas, o Santos Summit foi uma amostra de que só com a natureza conservada é possível promover a vida, e de que o meio ambiente é a base para igualdade e para uma economia próspera. Enfim, foram várias atividades que trataram de tecnologia, inovação e sustentabilidade, nos eixos temáticos de porto e energia, cidades inteligentes humanas e sustentáveis, comunidade e relações humanas, economia azul, saúde, bem-estar, esporte e games. E ainda houve tempo para anunciar a 4ª edição da Olimpíada Brasileira do Oceano – que visa engajar mais pessoas na celebração da cultura oceânica na educação - trazendo a temática "Oceano e Amazônia", em parceria com a UFPA.
Referências:
Gleiser, Marcelo in: O Despertar do Universo Consciente: um Manifesto para o Futuro da Humanidade 2024.
Endurecimento costeiro e infraestrutura cinza**:
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Impactos de infraestrutura cinza**:
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Ecoengenharia azul**:
Firth, L.B., Knights, A.M., Bridger, D., Evans, A.J., Mieszkowska, N., Moore, P.J., O'Connor, N.E., Sheehan, E.V., Thompson, R.C., Hawkins, S.J., 2016. Ocean sprawl: Challenges and opportunities for biodiversity management in a changing world, in: Hughes, R.N., Hughes, D.J., Smith, I.P., Dale, A.C. (Eds.), Oceanography and Marine Biology: An Annual Review, Vol 54, pp. 193-269.
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Morris, R.L., Heery, E.C., Loke, L.H.L., Lau, E., Strain, E.M.A., Airoldi, L., Alexander, K.A., Bishop, M.J., Coleman, R.A., Cordell, J.R., Dong, Y.-W., Firth, L.B., Hawkins, S.J., Heath, T., Kokora, M., Lee, S.Y., Miller, J.K., Perkol-Finkel, S., Rella, A., Steinberg, P.D., Takeuchi, I., Thompson, R.C., Todd, P.A., Toft, J.D., Leung, K.M.Y., 2019. Design Options, Implementation Issues And Evaluating Success of Ecologically Engineered Shorelines, in: Hawkins, S.J., Allcock, A.L., Bates, A.E., Firth, L.B., Smith, I.P., Swearer, S.E., Todd, P.A. (Eds.), Oceanography and Marine Biology: An Annual Review 57. CRC Press, Boca Raton, pp. 169–228
Notas:
* Liga das Mulheres pelo Oceano
** Referências fornecidas pela autora do projeto, Aline S. Martinez
Sobre a autora:
Elisa Homem de Mello, 51, é formada em Comunicação Social/UNESP Bauru, pós-graduada em Detrito Marinho/OU NL e Economia Circular/TU Delft, há mais de duas décadas escreve sobre sustentabilidade na EBVB e colabora como coordenadora e produtora de conteúdo da Newsletter da Liga das Mulheres pelo Oceano.
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