Por Rosy Isaias
A menina que sonhou ser cientista, ignorou o fato de ter nascido mulher e negra e acordou em 2024 como a primeira pesquisadora autodeclarada negra a atingir o nível mais alto possível para os bolsistas de produtividade em pesquisa do CNPq.
Deixe-me me apresentar a vocês: meu nome é Rosy Mary dos Santos Isaias, ou Rosy Isaias, para simplificar. Nasci em Nilópolis em 1965. Sou apaixonada pela Beija-Flor e pelos beija-flores. Sou uma mulher negra, cientista, mãe de 3 mulheres, a Kelly, a Kathlen e a Marina. Entrei para a docência lecionando inglês, depois ciências, lecionando para adolescentes e adultos no curso supletivo (hoje denominado EJA). Fiz mestrado e doutorado em Ciências, com área de concentração em Botânica, pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro e pela Universidade de São Paulo, respectivamente, o que se entrelaça ao meu cargo atual de Professora Titular do Departamento de Botânica da Universidade Federal de Minas Gerais. Atuo ainda como coordenadora da Comissão Técnica em Educação do CRBio04 e como soprano do Coral Cantáridas do ICB/UFMG. Afinal, cantar ajuda a conviver com os desafios, às vezes amargos, às vezes doces, da carreira acadêmica. Já pensei em desistir? Não! Se eu desistir ou adoecer, eles ganham. Quem são eles? Os racistas.
A notícia da bolsa me deixou catatônica num primeiro momento, eufórica num segundo momento e pensativa ao final da noite. A responsabilidade de atrair os olhares, de representar jovens que sonham com a carreira acadêmica é sentida a cada evento e a cada encontro. As manifestações têm sido emocionadas e emocionantes. Espero que as jovens cientistas tenham a mesma sorte que eu tive de estar no lugar certo, na hora certa, e encontrar as pessoas certas. O comum é que sejamos desacreditadas no universo acadêmico, como mulheres, e como negras. Quantas vezes as falas saídas de uma boca masculina ganham crédito mesmo depois de serem repetidas inúmeras vezes por vozes femininas, sejam estas vozes negras ou brancas.
Em um dos eventos recentes para o qual fui convidada, brinquei com o fato de ter chegado até aqui, sendo reconhecida como cientista e tendo que lidar com o poder da ocupação dos espaços. Logo, algumas pessoas estavam distraídas e não perceberam minha passagem. Outras perceberam e se incomodaram. O jeito foi ignorá-las. Os primeiros passos no caminhar como cientista se deram por meio do fascínio pela Botânica, a ciência das plantas, que me tomou desde a graduação, e, em seguida, na pós-graduação. Quando minha orientadora de mestrado, a Profa Léa Neves me propôs as galhas como objeto de estudo, o fascínio teve o foco ampliado. Galhas são produto de interações e permitem que minha pesquisa dialogue com a botânica, a zoologia, a ecologia e a química. As galhas me levaram à USP para seguir no doutorado, trabalhando sob orientação da Profa Jane Kraus, mantendo o foco multidisciplinar. As Profas Léa e Jane, duas mulheres brancas, são meus exemplos de mulheres cientistas que nunca colocaram a produção ativa dos meus melanócitos como empecilho para me orientarem e me ajudarem a trilhar os caminhos da ciência e da docência. Hoje, sei que meu papel como cientista negra é de grande responsabilidade, de exemplo, de incentivo, de certeza de que há olhares voltados para mim. Espero que tudo isso resulte numa próxima geração, mais colorida e diversa.
Galhas e minas na flora do Parque Estadual Serra Verde. Galhas são crescimentos anormais nas plantas provocados por insetos e ácaros que vivem parte de sua vida dentro das mesmas, e são o objeto de estudo da Professora Rosy.
A Professora Rosy em visita à Serra do Cipó (MG) posando ao lado de uma Vellozia gigante.
Sonhar sozinha é bom, o sonhar coletivo não tem preço. O convite para produzir este texto chegou quando eu estava em Salvador aguardando para palestrar na abertura da Semana de Ciência e Tecnologia de 2024, organizada pelo Instituto Anísio Teixeira em parceria com a Fiocruz Bahia. O novembro negro se aproxima e palestrantes e audiência deste evento são predominantemente negros, os temas: equidade e inclusão pontuam as falas. Os tempos mudaram, longe se foi o ano de 2018, quando tomei ciência de ser a única pesquisadora nível 1, autodeclarada negra, compondo o time de bolsistas de produtividade em pesquisa do CNPq, durante o I Congresso de Mulheres na Ciência da UFMG. Aqui, pontuo duas questões primordiais para as mulheres de cor: se ver e aceitar como negras, e se autodeclarar como tal. Afinal, ser negra/o é enfrentar o racismo frontalmente. Não tem saída, não é simples, nem confortável. Contudo, se ver, se assumir e se autodeclarar negra/o é libertador.
Ser professora titular do departamento de Botânica da UFMG e pesquisadora nível 1A do CNPq me trazem o sentimento de êxito e como já disse, de responsabilidade. Venho pensando bastante sobre estes dois títulos. Uma coisa é ler os editais e ter os requisitos para subir de nível, mas o sentimento de que algo ou alguém pode impedir este avanço sempre nos acomete nos momentos de avaliação. Nós, professores pesquisadores, somos avaliados pelos nossos pares que muitas vezes, brinco, são ímpares. A escalada enquanto pesquisadora iniciou após a participação em um congresso sobre galhas e organismos galhadores na Serra do Cipó, MG, no qual compareceram pesquisadores de todo o mundo envolvidos no estudo das interações inseto-planta. Os congressos científicos são momentos importantes de troca de informações, de aprendizado e de contatos com colegas que compartilham interesses em temas similares àqueles que estudamos. Voltei desse congresso na Serra do Cipó com o cérebro fervilhando de ideias, daí escrevi o projeto que foi aprovado, e com o qual iniciei dentre os pesquisadores do CNPq, como nível PQ 2. Investigar células e tecidos das plantas ao microscópio me encanta pois me revela o potencial de resposta destes seres clorofilados aos estímulos vindos dos fatores ambientais, tanto abióticos quanto bióticos. Tais investigações tendo meus alunos atuais e de antes como fortes colaboradores me levou a ter hoje pouco mais de 160 artigos publicados, o que faz do grupo de pesquisa que coordeno, um polo produtor de conhecimento sobre galhas neotropicais que circula pelo mundo.
Professora Rosy em palestra na Universidad de Concepción no Chile.
Chegar ao que pode ser considerado o topo da carreira envolveu muitos grandes encontros, muito trabalho, muitas horas de dedicação à arte de estudar as plantas, no meu caso, um microcosmos observado com ajuda de microscópios. Este é meu foco, entender a luz de diversos tipos de microscopia como as células e os tecidos vegetais reagem a estímulos externos. Na maioria das vezes, estes estímulos se originam de animais, tais como os insetos galhadores, que levam as plantas a reagirem de forma tão marcante, que novas estruturas estranhas ao corpo vegetal se formam, as galhas. Em se tratando de pesquisa básica, não descobrirei a cura do câncer ou algo que seja diretamente afeito aos seres humanos. Porém, conhecer o potencial destes seres incríveis que são as plantas e das interações estabelecidas com insetos e por vezes, fungos, ácaros e nematódeos, é desafiador e me coloca frente a estratégias de desenvolvimento e ao potencial das plantas para seguirem nos ofertando o bem mais caro, ar puro. Tenho repetido como um slogan em diversas oportunidades: sem plantas, não dá!
As plantas propiciaram momentos marcantes de minha carreira, na forma de dezenas de convites feitos para ser paraninfa, patronesse ou professora homenageada das turmas de formandos em Ciências Biológicas da UFMG. As galhas trouxeram a homenagem das homenagens para uma cientista, ter duas espécies de insetos galhadores com meu nome: a Palaeomystella rosaemariae Moreira & Becker e o Eriogalococcus isaias Hodgson & Magalhães. Recuperei essas memórias dentre outras quando da preparação de meu memorial para professora titular. Construí o memorial, tendo o olhar externo como foco e me questionando sobre o que me leva a seguir adiante.
Meus espaços são a sala de aula e o laboratório onde convivo diariamente com os alunos, minha força motriz, vivendo momentos nos quais desafio e sou desafiada. Me considero uma professora que faz pesquisa. As ideias fluem, a troca de impressões e o compartilhamento de conhecimentos com os alunos e pesquisadores colaboradores são prazerosos e proveitosos. O resultado é o crescimento de todos rumo aos seus sonhos, com um detalhe, se não for para realizar as atividades de pesquisa com leveza e prazer, acredito que não vale a pena. Atualmente, estou coordenando um projeto fronteiriço entre o ensino e a extensão, mas que também envolve a pesquisa. Este projeto se intitula: “Construindo olhares botânicos” e funciona em uma parceria da UFMG com a Escola Estadual Getúlio Vargas e o Parque Estadual Serra Verde. Os integrantes deste projeto são pesquisadores, pós-graduandos, graduandos e principalmente estudantes secundaristas; todos envolvidos na perspectiva de produção do conhecimento e da construção do diálogo com a sociedade sobre a importância das plantas no nosso cotidiano e na manutenção da vida no planeta. Tendo crescido em uma família de classe média, sem heranças a receber, o único caminho possível foi, e continua sendo, estudar. Meus pais me cercaram de livros e graças ao grande afeto a estes objetos pude aprimorar meu domínio da língua portuguesa e depois da língua inglesa. Além, claro, de viajar e conhecer diversas culturas sem me deslocar do sofá. Busco desenvolver este afeto na equipe do “Construindo”. Me preocupa, como professora, que cada vez menos os jovens leiam, cada vez tenham menos sonhos que os impulsionem para onde queiram seguir.
Ao longo da minha trajetória acadêmica posso dizer que pude sonhar, tive grandes encontros, com minhas orientadoras, com amigas e amigos que me impulsionaram a atuar na monitoria na graduação e na pós-graduação, a solicitar a primeira bolsa de produtividade em pesquisa ao CNPq: “Você tem o perfil. Peça!”. Pedi, o projeto foi aprovado, outros projetos vieram, as publicações saem como consequência da necessidade de divulgação dos resultados, meu conhecimento e meu currículo crescem, e cresce o conhecimento e os currículos de quem caminha ao meu lado. Embora meu fenótipo cause estranheza em alguns espaços, não há muito o que eu possa fazer, ou melhor, ao sol ativo mais e mais meus melanócitos. Busco dormir melhor do que eu acordei, sempre na certeza de que só há sentido no crescimento pessoal. Espero que a grande divulgação de ser a primeira pesquisadora negra nível 1A do CNPq seja não somente um marco na minha carreira, mas também um exemplo a ser seguido pelas jovens que sonham com a ciência. A elas eu digo: não desistam; se eu cheguei até aqui, vocês também podem!
Rosy Isaias nasceu em 1965 na cidade de Nilópolis, e é apaixonada pela Beija-Flor e pelos beija-flores. Foi professora de inglês,ciências e biologia. Tornou-se Botânica com Mestrado pelo Museu Nacional da UFRJ e doutorado pela Universidade de São Paulo. Desde 1995, é professora do departamento de Botânica da Universidade Federal de Minas Gerais, onde lidera o Grupo de Pesquisa em Estrutura, Fisiologia e Química de Galhas Tropicais. Com pouco mais de 160 artigos publicados, seu foco é nas respostas das plantas ao ataque de herbívoros galhadores. Mãe da Kelly, da Kathlen e da Marina, soprano do Coral Cantáridas, coordenadora do PPG Biologia Vegetal da UFMG e da Comissão Técnica em Educação do CRBio-04. Tornou-se recentemente a 1ª mulher autodeclarada negra a obter a bolsa de produtividade em pesquisa 1A do CNPq.
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