Por Ana Paula Prates
Convocada audiência pública para discutir a PEC 03/2022 na segunda-feira dia 27/05 as 14:00 e relator da PEC é o senador Flavio Bolsonaro. A PEC já passou pela Câmara sobre o número de PEC 39/2011.
A PEC nº 03/2022 revoga o inciso VII do art. 20 da Constituição e o § 3º do art. 49 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para extinguir o instituto do terreno de marinha e seus acrescidos e para dispor sobre a propriedade desses imóveis.
Os terrenos de marinha não são terrenos da Marinha do Brasil e sim terrenos da União.
Os “terrenos de marinha e seus acrescidos” localizam-se na extensão do território brasileiro, onde consideram-se as reentrâncias, áreas que margeiam os rios até o limite da influência da maré (preamar-médio de 1831). São as áreas situadas na zona costeira, margens de rios e lagoas, até onde se faça sentir a influência das marés – manguezais, apicuns, além daqueles que contornam ilhas costeiras e oceânicas. Essas áreas pertencem hoje à União e parte delas é ocupada por particulares que pagam pela sua utilização, são os chamados “foreiros”.
O referencial utilizado para demarcação da maré é de uma época na qual a ocupação costeira não era uma preocupação e um risco eminente para o ambiente e sociedade. Essa demarcação visava garantir uma faixa livre de edificações, potencializando o acesso e defesa do território frente a ameaças externas. Era uma outra época com conflitos diferentes da realidade atual do Brasil.
Sem a pretensão de prever um futuro, as áreas hoje ainda não ocupadas se tornaram uma espécie de "seguro" para a mitigação e adaptação às mudanças climáticas e na redução da vulnerabilidade da zona costeira frente a eventos extremos e aumento do nível do mar.
O que parece ser complexo e apenas tentar modernizar um instituto jurídico antigo esconde uma verdadeira grilagem em áreas da união, ou seja, de todos os brasileiros e brasileiras e que são estratégicas contra a vulnerabilidade da zona costeira frente a eventos extremos e aumento do nível do mar.
A aprovação da PEC na Câmara dos deputados, em fevereiro de 2022, ocorreu na mesma semana em que foi aprovada também na Câmara o PL 442/91, que regulariza jogos de azar no Brasil. As duas propostas seguem para análise no Senado. O sinal dado com essas duas aprovações mostra a verdadeira intenção do que está por trás, com o projeto de “Cancunização do Brasil”, provocando uma verdadeira corrida pela construção de grandes áreas à beira mar, inclusive de clubes e resorts para hospedar cassinos.
Grilagem Marinha já acontecendo: com a aprovação da PEC, ou mesmo apenas a sua expectativa, já se incentiva uma corrida pela ocupação de terrenos ainda nem ocupados no sentido de regularizar uma ocupação equivocada com vistas a qualificação para obtenção do domínio pleno da propriedade.
Em relação a questão envolvendo as propriedades já estabelecidas em áreas litorâneas e insulares, caracterizadas como terrenos de marinha sob domínio da União, essa matéria deve ser analisada com cautela e de forma conjunta, com os diversos atores institucionais no âmbito dos três entes federados, considerando entre outras questões: i) os conflitos de interesse envolvendo a manutenção do sistema de proteção e a pressão imobiliária em zonas estratégicas e sensíveis; e ii) o fato da não atualização, identificação e demarcação dos terrenos de marinha e seus acrescidos gerarem insegurança jurídica, bem como encargos financeiros desproporcionais à função da ocupação, conforme explanado pelas diversas justificativas contidas em diferentes proposituras legislativas apresentadas.
A SPU vem fazendo um trabalho de regularização dos terrenos ocupados e a Lei 13.240/2015 já permite a quem ocupa, a previsão de compra desses imóveis em terrenos de marinha, com facilidades de pagamento e descontos em relação à valores de mercado. A SPU desenvolveu um aplicativo chamado SPUApp que permite que pessoas foreiras possam realizar a remição do foro de forma ágil e sem burocracia. Essas são algumas facilidades desenvolvidas pela SPU para que as pessoas possam optar pela remição do foro ou possam comprar os imóveis. Porém, com o fim dos terrenos de marinha, a compra do imóvel ocupado deixará de ser uma possiblidade e passará a ser uma obrigação.
Ressalta-se que não existe justiça social quando se determina a transferência em massa de imóveis públicos para particulares, como preconiza a PEC. Essa é uma medida que pode cristalizar desigualdades.
A proposta da PEC 3/2022 rompe com a perspectiva de visão sistêmica, planejamento e desenvolvimento sustentável, na medida que fraciona o patrimônio da União e privilegia poucos em detrimento de toda sociedade brasileira.
Ainda, a soma hoje de imóveis cadastrados, alcançados pela proposta de PEC, é de 554.683 imóveis que arrecadam valor superior a 195,25 bilhões de reais que deixariam imediatamente de serem recolhidos aos cofres públicos. Estima-se que considerando as áreas da União que ainda precisam ser demarcadas e cadastradas, em projeção, a SPU estima que existam cerca de 2 milhões de imóveis ocupados por particulares. A saída desses imóveis do patrimônio público representaria uma perda futura que superaria os 450 bilhões de reais em patrimônio público federal.
Para além dos valores que a União perderia, existe a questão ambiental envolvida nessa PEC. Deter a propriedade dos terrenos de marinha, possibilita que a União possa atuar de forma direta em políticas de preservação, de combate à riscos e com especialmente o necessário planejamento para o enfrentamento dos eventos relacionados ao aumento do nível dos mares e suas consequências para populações litorâneas.
Vários países desenvolvem ações de preservação e restauração de ecossistemas litorâneos, na tentativa de se adaptarem aos impactos que já estão acontecendo e ao pior que vem por aí. Exemplo interessante é o que acontece na França, onde uma instituição pública, o Conservatório do Litoral, vem comprando áreas litorâneas, antes privatizadas, a fim de restaurar e preservar tais áreas e devolver o caráter público as praias. Da mesma maneira, a National Trust, uma ONG do Reino Unido, preocupada que a costa estava ficando descaracterizada, urbanizada e privatizada passou a comprar áreas de frente costeiro para a preservação.
Dessa forma, a tentativa de se aprovar a PEC 03/2022 vai na contramão da história, quando o mundo assiste às diversas tragédias causadas por eventos extremos nas áreas costeiras, o país resolve colocar uma PEC para fragilizar mais e mais todo esse patrimônio da União.
Privatização das praias – o que realmente está em jogo?
Apesar da PEC 3/22 não prever a privatização de praias especificamente, a privatização sem critérios dos terrenos de marinha, pode levar à redução do acesso público às praias.
Tramita junto com a PEC o PL 4444/2021 que "cria o Programa Nacional de Gestão Eficiente do Patrimônio Imobiliário Federal, alterando Leis como a Lei 9.636/1988, que institui o Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro.
Segundo a Lei do Plano Nacional de Gerenciamento Costeira “as praias são bens públicos de uso comum do povo, sendo assegurado, sempre, livre e franco acesso a elas e ao mar, em qualquer direção e sentido”.
Resumidamente o PL traz várias alterações nas Leis declarando que as praias seriam consideradas como Zonas Especiais de Usos Turísticos (ZETUR), e que essas áreas poderiam ser repassadas aos municípios podendo ter até 10% dessa faixa privatizada.
A PEC 3/22 juntamente com o PL 4444/21 e mudariam toda a configuração patrimonial do litoral brasileiro e demais terrenos alagáveis, nos levando a uma precarização ainda maior do que temos no presente, a um futuro completamente incerto, vulnerável e injusto.
Como se envolver:
Vote NÃO na consulta pública do Senado Federal, clicando no link: https://www12.senado.leg.br/ecidadania/visualizacaomateria?id=151923
Acompanhe audiência pública sobre a PEC 3/2022 agendada para 27/05/2024 - 14:00, por meio do link: https://www12.senado.leg.br/ecidadania/visualizacaoaudiencia?id=29280
Acompanhe a live no Instagram da Liga das Mulheres pelo Oceano sobre a PEC 3/2022, no domingo (26/05) às 11h
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