Quem são as mulheres que ocupam as águas salgadas?
Gabriella Rocha Pegorin
Nutricionista CRN-3 58758
Mestre em Ciências
Elas são mergulhadoras, fotógrafas, documentaristas, pesquisadoras, surfistas, ativistas, pescadoras, marisqueiras, velejadoras, marinheiras, salva-vidas, prático (ainda que representando apenas 2,2% da praticagem brasileira), profissionais de diversas áreas em cargos off-shore - enfermeiras, nutricionistas, engenheiras, etc.
A relação da humanidade com o mar começa com o medo do desconhecido, o homem temeu a imensidão das águas provocadas por uma punição bíblica - o dilúvio. Também precisou reunir coragem para enfrentar o desconhecido no início da exploração das Américas pelas grandes navegações europeias, há homens que temem até hoje a força do mar, de suas marés, o risco de suas ondas, o encontro com grandes criaturas.
Até aqui fiz referência ao homem como homo sapiens. A partir de agora preciso fazer um importante recorte de gênero e trazer a interseccionalidade da figura do sexo feminino ocupando esses mesmos espaços.
Nós mulheres podemos temer todos os riscos envolvidos em nossa permanência no mar, mas ainda precisamos enfrentar o maior de todos eles: o patriarcado. A estrutura opressora que nos coloca em posição de enfrentamento ao assédio, a diferença salarial e de direitos profissionais, a culpa pelas proporções dos nossos corpos, o medo pela exposição de nossas curvas em roupas curtas, apertadas ou até mesmo roupas que não foram feitas para nós e não consideram a nossa individualidade biológica.
A grande Marina Lima nos anos 80 lançou uma música que marcou uma era da MPB - Uma noite e ½.
“Vem chegando o verão
Um calor no coração
Essa magia colorida
Coisas da vida
Não demora muito agora
Todas de bundinha de fora
Topless na areia
Virando sereia”
Uma nova Marina surge na música popular brasileira atual, a Marina Sena, nos lembrando que no verão mostramos o ombrinho.
“Ai que delícia o verão, a gente mostra o ombrinho…”
De fato, deixar o corpo à mostra no verão é um traço clássico da cultura brasileira. Em regiões costeiras e litorâneas, a exposição do corpo em roupas pequenas e curtas é imprescindível para apreciar as temperaturas quentes do verão. No ano de 2024 já podemos trocar “apreciar” por “suportar” as ondas de calor extremo de um planeta que avança em mudanças climáticas e ebulição global.
Expor o corpo em roupas minúsculas e justas na beira da praia pode parecer um bálsamo para diversas mulheres, principalmente para aquelas que vivem em um ambiente seguro, têm um corpo considerado padrão para sua época e geração ou que aposta em procedimentos estéticos para alcançá-lo. Não quero que pareça uma crítica, mas quero enfatizar o privilégio de poder se camuflar no “padrão”, “adequado” ou “aceitável”.
Para uma mulher que vive em um ambiente violento ou que não está dentro dos padrões impostos pela moda atual - lembrando que já tivemos diversos padrões corporais na moda, corpos extremamente magros chamados de “heroin chic” nas passarelas, corpos curvilíneos com quadris largos, cintura fina e muito busto, como o corpo das Kardashians até pouco tempo atrás - a exposição do corpo em biquínis pode parecer um pesadelo, causando impactos profundos na imagem corporal.
De acordo com a nutricionista Victoria Golfieri, especialista em saúde da mulher e com aprimoramento em transtornos alimentares pelo AMBULIM, aborda o impacto da pressão estética na vida das mulheres da seguinte maneira:
Estima-se que 9 a cada 10 mulheres no mundo tem algum grau de insatisfação com a sua aparência, assim como 1 em cada 6 mulheres trocaria até 5 anos de vida para ter o tão sonhado “corpo perfeito”. A imagem corporal é a combinação da forma como vemos, pensamos e sentimos nosso corpo, além de como acreditamos que os outros nos veem. O padrão de beleza imposto principalmente a mulheres, vem causando problemas constantes que desencadeiam alterações negativas na forma como essas mulheres tratam seu corpo e, principalmente, o enxergam, desenvolvendo muitas vezes distorção da imagem corporal.
Vamos ouvi-lás
Essa não é uma pesquisa acadêmica e nem mesmo um jornalismo profissional, lembrando que quem vos escreve é nutricionista e está interessada nos temas Corpo e Comer.
Perguntei para mulheres incríveis do meu convívio como elas se sentiam sobre seu corpo e as roupas que usavam no ambiente de trabalho (o mar). Minha expectativa era escrever sobre pressão estética, mas o enfrentamento de uma mulher no mar parece superar somente essa questão e ir muito além.
Existem forças de correntezas e ondas gigantes formadas pela pressão estética, mas não somente ela, como também o assédio e a dificuldade de usar roupas que teoricamente foram projetadas para corpos femininos. Ou talvez somente para corpos dóceis, frágeis, magros e longilíneos… e que não se movimentam muito!
Separei alguns recortes das conversas que tive para compartilhar nesse texto:
“Eu sempre fui extremamente insegura com meu corpo e teve uma época que eu tava um pouco mais leve… isso pra usar biquíni e mostrar meu corpo. Aí eu engordei de novo e comecei a ficar insegura sobre meu corpo. Mas quando eu tô no mar assim, eu coloco meu maiô e às vezes ainda me sinto desconfortável [..] mas quando eu tô lá dentro, é real, alguma coisa muda muito. Minha perspectiva está fora do meu corpo, tudo muda. Estou dentro daquele ambiente, vendo aquelas coisas, aquele mundo completamente diferente e acabo esquecendo e vendo que é muito maior que eu, sabe? E acho que é essa sensação que eu tenho dentro d’água. Quando eu tô dentro d’água é um outro mundo pra mim. Todas as fotos e vídeos que faço quando estou no mar acabo nem ligando pro meu corpo e realmente só estou lá. Mas quando eu saio volto a refletir de novo sobre a minha insegurança com meu corpo, enfim… É um processo diário sobre autoaceitação e perceber que a gente é muito mais que nosso corpo. Essas são as palavras que preciso repetir diariamente e fixar para fora da água também”.
G. L. 25 anos, bióloga e fotógrafa.
“Foi um senhor mais velho que era o piloto do barco, eu me sentia desconfortável e nunca reagi… só ficava constrangida e no meu canto. Outras situações eram tipo ficarem me secando (quando um homem olha de forma desagradável). Isto aconteceu em algumas situações, sempre de campo quando eu estava de biquíni por conta do mergulho [...] daí passei a me cobrir mais e me sentir culpada por estar de biquíni”.
“Será que eu estou errada por estar de biquíni?”
“Sempre tentei me vestir para tentar parecer mais ‘séria”, pois eu era mulher e jovem, sentia que assim seria levada mais a sério no trabalho”
A. M, 40 anos, pesquisadora.
“Não gosto de surfar de biquíni, uma razão é pela imagem corporal mesmo, eu tenho muita estria e não gosto de colocar pra jogo, por isso muitas vezes eu mal uso biquíni”
“Para surfar eu nem gosto mesmo, nem a parte de cima e nem a de baixo, porque às vezes eu vou mandar uma manobra mais radical e daí eu tenho medo de sair, já aconteceu quando eu era mais nova, sabe? E aí por isso eu não uso. Mas também sinto que os caras ficam olhando… você tá passando remando e os caras ficam olhando”.
“Mas talvez o lance maior seja as minhas estrias”.
J, 27 anos, surfista profissional.
“Na verdade, no início eu sempre tentei esconder meu corpo. Seja com roupas largas ou deixando de ser vaidosa mesmo. No início do ano passado, eu atingi a máxima. E estaria tudo bem, mas entendi a raiz dessa atitude quando voltei a me arrumar, por uma influência de uma amiga, e percebi que eu sou sim muito vaidosa, que estava me escondendo ao máximo por estar num cenário repleto de homens e que aquilo afetava minha auto estima. Pra você ter ideia, no início da minha trajetória profissional na náutica, eu deixei até de ter relacionamentos para não ser conhecida como a mulher de alguém e sim pelo que eu sou. Deixei de me arrumar pra que me contratassem pelo meu trabalho, não por ser um rostinho, ou então, pra que pelo menos na comunidade não dissessem que cheguei até aqui por “facilidades” de ser mulher. Irônico, logo nós mulheres que não temos facilidade nenhuma no dia a dia.
Ao mesmo tempo, mesmo recuperando minha vaidade, ainda não me sinto à vontade para usar qualquer roupa. Às vezes tá um calorão daqueles, onde a gente só quer navegar de biquíni ou shorts curto, mas fica com medo de ser mal interpretada. Na vela então, vira e mexe estamos em posições que pros machos podem ser pratos cheios. Hoje eu tenho algumas peças que uso pra trabalho, mas nunca marcando nada, por medo de ser assediada ou mal interpretada. Nunca fico de biquíni em barcos com clientes homens (o que muda total quando estou com mulheres), não uso shorts curtos e as vezes fico até de calça (mesmo no calor) pra não ter erro.
Felizmente, nunca fui obrigada a usar uniformes que me constrangessem, acho que isso também facilita. Mas já vi em muitos barcos mulheres usando camisetas coladas e shorts mega curtos, com homens olhando por todo lado.
É difícil sempre ter que se “policiar” para não correr o risco de passar por um assédio ou ser criticada.”
T. P, velejadora, 26 anos.
É possível identificar pelo menos três grandes desafios para as mulheres entrevistadas:
A pressão estética e a imagem corporal.
O assédio.
Essas roupas foram feitas para nós, mas talvez não estejam adequadas para todas nós ou para todas as ocasiões que envolvem o mar.
Sobre a questão da pressão estética e mais ainda, pensando sobre as estrias de J que é um processo completamente natural do corpo humano, mas um dos grandes motivos de insegurança para mulheres, o pensamento que me alcança é “deve ser tão mais fácil ser homem”.
Homens têm pelos pelo corpo, para muitos homens é normal ter pelos no peito.
E se eles fossem questionados por ter pelos nos peitos ou no rosto como somos questionadas pelo surgimento de estrias? Para o homem, os pelos no peito ou no rosto são acessórios, eles podem optar por estar de barba ou sem barba para ganhar um aspecto visual diferente. Imaginem publicidades massivas de tratamento estético para seus pelos no peito e que mostrassem “antes e depois” do procedimento mostrando-os o quanto estavam medíocres e esteticamente inadequados com aqueles pelos.
E se você, leitor ou leitora, se perguntou “mas por que diabos questionar uma característica natural do homem - que é ter pelos?” Eu alcancei meu objetivo. Pois de fato, tanto pelos como estrias podem acontecer pelos corpos humanos. Gostaria de não ser questionada pelas minhas estrias e gostaria que J não fosse questionada pelas dela. Gostaria que não me fosse criada uma insegurança baseada em um padrão imposto e que me fosse vendida a solução para um problema que eles mesmos criaram, pois não quero ser assediada por uma publicidade que mercantiliza meu corpo e torna o “corpo perfeito” um objeto de consumo.
A pressão estética é sustentada por dois importantes pilares: o capitalismo e o patriarcado. Para um sistema que oprime mulheres é fundamental torrar o nosso dinheiro tentando alcançar uma beleza inatingível e um padrão ideal em constante mudança é uma maneira de nos silenciar sobre pautas importantes.
Enquanto estamos sendo atingidas pela pressão por ter peitos maiores ou menores em determinada época da moda, cinturas mais finas, questionar o tamanho dos nossos quadris, o comprimento dos nossos cílios, a espessura da nossa sobrancelha, se o cabelo liso ou cacheado é mais fácil de cuidar, removendo nossa cutícula como se fosse um fungo, nos submetendo aos procedimentos cirúrgicos para esculpir nosso abdômen ou em dietas de emagrecimento durante a vida toda, removendo nosso pelos até estarmos parecidas com nossas versões crianças e buscando a fórmula mágica para produzir colágeno até o fim da vida, não estamos brigando por nossos direitos ou questionando um sistema opressor.
E estamos gastando quantidades obscenas de dinheiro para nos encaixar em padrões inalcançáveis alimentando um sistema que reforça as nossas inseguranças para seu benefício próprio.
Não temos forças para lutar pelos nossos verdadeiros interesses enquanto estamos sendo sufocadas pela pressão estética, mas já era de se esperar… quem tem forças para lutar quando passa a vida inteira em dietas para emagrecer e se encaixar no padrão? Naomi Wolf diz em O mito da Beleza que “fazer dietas é o sedativo político mais potente na história das mulheres”.
E quais são os nossos verdadeiros interesses?
Depois de escutar as mulheres que admiro e me conectar com a rede de mulheres ao meu redor, vejo que direitos humanos básicos ainda precisam ser garantidos.
Queremos existir sem medo do assédio e da violação de nossos corpos em primeiro lugar, esse desejo é unânime entre nós.
É pedir o mínimo que o mundo seja um lugar onde os homens não enxergam nossos corpos como propriedade ou projetam lucros sobre nossas inseguranças.
Não invisibilizar a nossa existência e considerar as nossas necessidades para desenvolver qualquer produto que seja destinado para nós é o mínimo.
Não questionar a nossa capacidade é o mínimo.
Não medir a nossa capacidade intelectual e profissional pelas roupas que estamos vestindo é o mínimo.
Não objetificar nossos corpos o tempo todo, sobretudo quando estamos em um ambiente de trabalho lutando para desenvolver uma trajetória profissional de sucesso mesmo sem ter as mesmas oportunidades que os homens sempre tiveram, é o mínimo.
Por enquanto pedimos equidade de direitos, só assim a vida na terra e no mar estará confortável para nós.
Por isso, mulheres, dedico a vocês uma frase da Fernanda Imamura que eu gosto muito: “não se destrói o patriarcado com fome”. Que possamos enxergar a comida como combustível e o corpo como ferramenta para lutar pelos nossos direitos até garanti-los.
Referências
WOLF, Naomi. O Mito da Beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres. Rio de Janeiro, Rosa dos Tempos, 2018.
MAROUN, Kalyla; VIEIRA, Valdo. Corpo: uma mercadoria na pós-modernidade. Psicol. rev. (Belo Horizonte), Belo Horizonte , v. 14, n. 2, p. 171-186, dez. 2008.
Grupo de Estudos em Transtornos Alimentares e Obesidade, Universidade de São Paulo, 2021.
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