A UNESCO estabelece que através da colaboração de vários intervenientes, será possível desenvolver uma representação digital abrangente do oceano, incluindo um mapa dinâmico de acesso livre e gratuito que permita explorar, descobrir e visualizar as condições dos oceanos no passado, presente e futuro, de uma forma que possa ser relevante para todas as partes interessadas.
[LIGA] Qual sua formação e sua atividade atual?
[Letícia] Eu fiz graduação em Oceanografia na UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Rio de Janeiro - RJ), mestrado em Geoquímica na UFF (Universidade Federal Fluminense, Niterói - RJ) e doutorado na Université de Perpignan Via Domitia, em Perpignan, França.
Sou professora adjunta de Oceanografia Química na UERJ desde 2012, e coordeno o lab. de Oceanografia Química. Em paralelo, participo de vários projetos de pesquisa nacionais e internacionais com foco na biogeoquímica marinha e ciclo do carbono em áreas costeiras e oceânicas, e co-lidero a Rede Brasileira de Pesquisa em Acidificação do Oceano, a Rede BrOA (www.broa.furg.br), que este ano completará 10 anos em dezembro. Integro também o grupo de cientistas da Rede Clima ou Rede Brasileira de Pesquisas sobre Mudanças Climáticas Globais (http://redeclima.ccst.inpe.br/).
Um pouco fora do tema “oceanografia”, integro um grupo multidisciplinar ligado à Reitoria da UERJ intitulado “Agenda 2030 na UERJ” (https://www.agenda2030nauerj.org ), que busca integrar atividades de ensino, pesquisa, extensão e cultura em torno dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030. Já realizamos 3 eventos, um presencial em 2019, e dois virtuais em 2020 e 2021, respectivamente. No evento de 2021, que recebeu financiamento da FAPERJ (Fundação de apoio à pesquisa do Estado do Rio de Janeiro) escolhemos como tema central o ODS 11 - Cidades e Comunidades Sustentáveis. Já estamos preparando outro evento virtual para 2022 (onde também contaremos com apoio da FAPERJ), dessa vez com o “ODS 14 - Vida na Água” como tema central.
Em 2018 recebi um convite para participar do grupo de autores do 6o Relatório sobre o Clima do IPCC, e aceitei. Trabalhei com um grupo incrível de pessoas de várias formações acadêmicas no capítulo 5, sobre o carbono e outros ciclos biogeoquímicos (https://www.ipcc.ch/report/ar6/wg1/downloads/report/IPCC_AR6_WGI_Chapter_05.pdf). Foram 3 anos de muito trabalho, e de muito aprendizado, especialmente sobre a biogeoquímica terrestre e os impactos nos diferentes cenários adotados, que incluem não só as emissões de gases de efeito estufa, mas também a adoção (ou não) de medidas de mitigação para as emissões. Acho que todos saímos muito felizes com o resultado e com a repercussão que o Sumário para Tomadores de Decisão - o SPM - teve em agosto deste ano, e continua tendo.
[LIGA] Qual seu vínculo com o oceano e como ele começou?
[Letícia] Eu nasci em Brasília. quando era muito pequena, vivia fascinada com a série O Mundo dos Oceanos do Jacques Cousteau na televisão. Era o meu programa favorito, junto com o Sítio do Pica-Pau Amarelo. Cresci seguindo (sem rede social!) tudo o que o Cousteau fazia, achava incrível. Em algum momento no ensino médio (2o grau) comecei a procurar os conteúdos dos cursos de graduação em Biologia e Geologia, mas sempre achava que faltava alguma coisa, nunca estava satisfeita. De repente, em alguma publicação da editora Abril, dei de cara com a graduação em Oceanografia e os conteúdos das disciplinas e achei perfeito para mim: química, biologia, geologia, física, meteorologia, climatologia, matemática é tudo o que eu gosto - com especial predileção por química - até hoje. Na época, só havia 2 cursos de graduação no Brasil, um na FURG, o mais antigo, e outro na UERJ, bem na cidade onde eu morava. Depois disso direcionei todas as minhas energias para passar no vestibular, e hoje estou aqui.
[LIGA] Quais foram suas impressões por ter participado da construção da discussão da participação do Brasil na Década do Oceano?
[Letícia] Eu participei dos encontros regionais do Atlântico Sul (2019, no Rio) e do Atlântico tropical oeste (2020, já em modo virtual). Em ambos fui relatora do grupo de discussão sobre um oceano previsível, em função da minha experiência com a observação do oceano.
Os dois encontros foram bastante intensos, em especial o de 2019, e o ponto positivo foi a escuta de vários pontos de vista, pois reuniram pessoas de países com realidades diferentes em termos de desenvolvimento e acesso ao financiamento para pesquisa em Oceanografia e ciências afins.
As oficinas subnacionais, promovidas pelo Brasil em 2020, também foram bastante ricas, apesar de eu, pessoalmente, achar que será uma tarefa difícil para os grupos regionais implementarem ações concretas sem a perspectiva de apoio federal ou de um programa nacional de pesquisa básica e aplicada voltado para as ciências do mar. A criação de um instituto para o mar no Brasil, mais ou menos aos moldes do INPE ou das agências como a NOAA (EUA) ou o IFREMER (França), será sem dúvida um avanço.
[LIGA] Nos conte sobre sua atuação em relação ao desafio de se obter um oceano previsível e na sua visão, quais as principais dificuldades a serem superadas relacionados a este desafio?
[Letícia] O principal desafio é a integração, nacional e internacional, e a gestão do volume de dados que é gerada com a observação dos oceanos.
Os projetos e iniciativas de observação do oceano precisam estar conectados, e é preciso desenvolver a ideia de disponibilizar os dados gerados, de forma livre, para a comunidade científica. Pode-se até usar uma pequena moratória de tempo, mas é essencial que os dados estejam disponíveis. Um exemplo disto é o que se vem discutindo na comunidade científica sobre o princípio FAIR para os dados. F de findable, encontrável, A de accessible, acessível, I de interoperable, interoperáveis i.e. que possam ser comparados ou integrados a novos conjuntos de dados, R de reusable, reutilizáveis.
Este ano, o grupo de referência do projeto GLODAP (GLobal Ocean Data Analysis Project - www.glodap.info , do qual faço parte) publicou um artigo (https://www.nature.com/articles/s43247-021-00209-4) sobre este assunto, com foco nos dados sobre a biogeoquímica do oceano, mas que eu acho que deve ser aplicado a qualquer área das ciências do mar: com o aumento da disponibilidade de dados sobre o oceano e com o aumento da necessidade de entender a resposta do oceano face às mudanças climáticas e às medidas de mitigação e redução de emissões, incluindo a captura de carbono, é fundamental o acesso aos dados e que haja uma estrutura sustentável (i.e. financiada a longo prazo) de observação do oceano e ciência de dados que dê o devido suporte à comunidade científica, sociedade civil e tomadores de decisão. Esta ação vai ao encontro do ODS 14, que fala em tecnologia e ciência para o uso sustentável do oceano, bem como ao encontro do oceano sustentável, preconizado pela Década do Oceano.
Outro desafio gigante será incorporar as ciências humanas às geociências para essa “construção” da Década do Oceano. Eu fiquei um pouco receosa nos workshops nacional e da região SE sobre a década com falas repetidas e superficiais sobre “incorporar o conhecimento tradicional” sem trazer medidas concretas para isso. Sim, é importante preservar este tipo de conhecimento, mas há “ciência” para isso também, como a Antropologia ou a Geografia, e eu acredito que não esteja 100% dentro do meu entendimento pessoal do oceano previsível, que é muito mais técnico e “prático”. Há muita literatura científica sobre as técnicas usadas para mesclar os “números” que vêm das observações ou modelagem aos aspectos socioeconômicos e do conhecimento tradicional. O conhecimento tradicional faz parte da cultura, e do pertencimento de todos na sociedade. Seria muito triste uma população que não conhece ou não honra este tipo de conhecimento.
Profa. Dra. Letícia Cotrim da Cunha
Letícia é co-autora do Relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) lançado mês passado! Caso não tenha visto ainda, você pode acompanhar essa conversa bacana da Paulina com a Letícia que está disponível no nosso Instagram da Liga!
Esse texto foi coordenado por Bárbara Pinheiro, membra do grupo de comunicação do GT-Década do Oceano da Liga das Mulheres pelo Oceano.
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