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No Brasil, historicamente, a qualidade e o acesso aos serviços de abastecimento de água não se distribuem de forma homogênea pelo território nacional. Na região sudeste, grande parte da população tem acesso aos serviços de abastecimento de água, enquanto na Região Norte a carência ainda é muito grande. Relatórios do IBGE - Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística, e o Diagnóstico dos Serviços de Água e Esgotos do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) apontam que a população residente nos centros urbanos ou em regiões com grande concentração populacional é melhor atendida com infraestrutura de saneamento. Entretanto, sofrem com saneamento inadequado cerca de 68 milhões de pessoas, que moram em 4530 municípios com menos de 100 mil habitantes (IBGE, 2016) e com perfil econômico predominantemente rural.
A ausência de saneamento é ainda mais marcante nos 3.798 municípios com até 20 mil habitantes 68,2% do total. As desigualdades estão diretamente relacionadas a capacidade de investimentos dos municípios mais pobres, as áreas rurais e a população residente em assentamentos precários em grandes centros urbanos.
O saneamento básico, que compreende o abastecimento de água, o esgotamento sanitário, a drenagem e os resíduos sólidos, possui intrínseca relação com a qualidade de vida das pessoas e o desenvolvimento do Brasil. Por isso, os investimentos deveriam ser proporcionais às deficiências locais e regionais em saneamento, de modo a alavancar o atendimento da população que reside nos municípios mais pobres e que não constam de forma estruturada no orçamento dos governos de todas as instâncias, como é o caso de 15,6% dos domicílios que ainda se utilizam de fossa séptica como solução para o afastamento dos esgotos sanitários e também a 17,9% dos domicílios brasileiros que não possuem solução adequada de esgotamento sanitário. São 12,4 milhões de domicílios a despejar esgotos para fossas rudimentares, valas, rios, lagos, estuários marinhos ou outros destinos, conforme a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – PNAD de 2019.
Segundo Borelli (2007)[1], essa desigualdade se observa “no processo de uso e a ocupação do solo , que vêm ocorrendo de modo intensivo e aleatório, na costa brasileira, redundando em problemas ambientais e de saúde pública, dada a disposição inadequada dos resíduos sólidos e o lançamento de esgotos e de efluentes industriais nos corpos d’água que afetam, particularmente, o turismo, a pesca e a aquicultura -principais setores de ocupação das populações tradicionais”.
Como exemplo deste fenômeno, na Baixada Santista 15,83% dos domicílios (IBGE 2010) estão em assentamentos precários sobre áreas irregulares, como mangues, encostas de morros e fundos de vale, lançam seus resíduos nas águas que chegam ao mar, tendo por consequência a balneabilidade prejudicada em muitas praias No município do Guarujá há o maior número de habitantes morando em favelas da Baixada Santista: são 26.095 domicílios localizados em assentamentos precários (IBGE, 2010), que resultam em 50% das praias do Guarujá com má balneabilidade, segundo relatório da Companhia Ambiental do Estado de São Paulo - Cetesb[2].
Aprovação do PL 4162/19 e seus impactos
Uma análise superficial dos dados referentes aos índices de atendimento é suficiente para entender que as demandas por saneamento no Brasil estão nos municípios mais pobres, nas zonas rurais ou em assentamentos precários localizados nas grandes cidades, locais que tem em comum a predominância de população de baixa renda. Áreas que somente terão suas demandas atendidas com investimentos públicos, uma vez que investir em saneamento é oneroso e com retorno financeiro de longo prazo.
É impraticável imaginar que o capital privado internacional oriundo de corporações financeiras transnacionais irá abrir mão do lucro para construir barragens, açudes, adutoras de água e sistemas de saneamento para atender vilas, cidades e comunidades pobres. Contraditoriamente, esta é a maior justificativa apresentada pelo governo federal para transferir os investimentos em abastecimento de água e saneamento ao capital privado, na contramão das necessidades da população e de forma convergente com o já anacrônico neoliberalismo e com o desmonte do estado.
O Brasil, ao defender e incentivar a privatização do setor do saneamento flerta com a morte e expõe grande parcela da população à condição de não ter acesso à água tratada e à coleta, afastamento e tratamento dos esgotos. A população que hoje sofre com a ausência de infraestrutura de saneamento permanecerá na mesma situação, com forte risco de agravamento e ampliação das restrições de acesso ao saneamento para aqueles que hoje já têm esse benefício.
Ao aprovar a Lei 4162/19, o Senado expôs uma grande parcela da população à maior vulnerabilidade. Esse projeto tem por objetivo único a privatização das grandes empresas estaduais de saneamento, criadas na década de 70, argumentando com o absurdo discurso que os investidores internacionais irão potencializar os recursos necessários ao setor e universalizar o serviço em território nacional.
O projeto de lei que incentiva, ou melhor, aplica a obrigação da privatização do saneamento no Brasil, teve como relator e maior defensor o senador Tasso Jereissati, cujo interesse na matéria é indisfarçável, uma vez que é representante-mor dos altos interesses da Coca-Cola no Brasil por meio do grupo Calila Participações, a única acionista da empresa brasileira Solar, que interage com altos poderes globais interessados em energia e em recursos hídricos.
O Brasil com a aprovação e incentivo à privatização, entra na contramão das tendências mundiais que hoje buscam, por meio da reestatização, melhorar a qualidade e o acesso de serviços essenciais ofertados a sua população. Segundo estudo do Transnational Institute (TNI)[3], sediado na Holanda, 1.408 municípios de 58 países, nos 5 continentes, reestatizaram seus serviços, sendo que, 312 municípios na área de água e/ou esgoto de 36 países entre os anos de 2000 e 2019. O Brasil ocupa a vice-liderança em reestatização de água e saneamento no mundo, com 78 casos confirmados, ante 106 na França. Das reestatizações, 77 são municípios do Tocantins e mais Itu, no estado de São Paulo. Privatizações que não deram certo por motivos recorrentes: baixos investimentos e insatisfação com a prestação dos serviços oferecidos e altos valores tarifários. Tocantins é uma evidência de como opera o mercado privado, onde os municípios de pequeno porte são os mais prejudicados, pois além de menos lucrativos, têm carência de apoio do estado, pouca capacidade técnica e quase nenhuma força política para negociar com o prestador dos serviços de saneamento.
O cenário para a população brasileira não é otimista com a privatização da água e do esgoto. Será necessário um amplo processo de mobilização nacional, estado por estado, cidade a cidade, bairro a bairro, para impedir a privatização de nossas águas. Caso contrário teremos que viver processos de reestatização semelhantes aos da “guerra da água” de Cochabamba (Bolívia) ou de Buenos Aires, onde a concessão dos serviços de abastecimento de água e saneamento à multinacional francesa Suez em 1993 resultou em conflitos, recorrentes renegociações contratuais, aumentos tarifários e descumprimento de metas no que diz respeito a investimentos, expansão dos serviços, preservação ambiental e controle de qualidade da água, entre outros problemas.
Neste momento, o Brasil precisa unir forças para combater a privatização do acesso a água, para fazer frente ao poderio econômico das grandes corporações que visualizam a água apenas como mercadoria, desconsiderando que a água é um bem comum, cujo acesso é um direito fundamental para toda população reconhecido pela ONU em julho de 2010.
O povo brasileiro precisa se reunir em torno de um projeto de soberania de suas águas e de garantia do acesso universal para todos e todas, a união e a luta por uma sociedade mais justa e equilibrada economicamente. A universalização do setor de saneamento não se dará por meio do mercado financeiro, mas sim pela somatória de esforços e pela construção coletiva, com planejamento e políticas públicas. Os governantes devem abandonar os discursos privatistas, buscar a integração dos entes federativos e estabelecer um novo pacto para o setor, que seja capaz de superar as desigualdades regionais e locais no atendimento do saneamento à população.
* Francisca Adalgisa da Silva - Diretora da Associação dos Profissionais Universitários da SABESP
[1] Borelli, Elizabeth - Urbanização e Qualidade Ambiental: O Processo de Produção do Espaço Da Costa Brasileira – Revista Internacional Interdiscplinar – Interthesis- v.4 n.1 Florianópolis Jan/jun 2007. [2] Relatório disponível em: https://qualipraia.cetesb.sp.gov.br/qualidade-da-praia/guaruja.phtml). [3] Disponível em: www.tni.org/en/futureispublic
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