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Liga Convida: Juliana Amanayara Tupinambá & Dinamam Tuxá

Luta pela vida: a nossa história não começa em 1988


É sabido que os povos indígenas são os verdadeiros donos desse território que se chama Brasil, que desde a colonização os povos indígenas vêm sofrendo com o processo de inserção e assimilação forçada na sociedade não indígena. O resultado disso foi a crença na extinção dos povos indígenas.


Os povos indígenas sofreram, e ainda sofrem, com o processo integracionista e o modelo desenvolvimentista. Essa integração acarretou a miscigenação entre povos de forma imposta e fez com que vários povos deixassem seus territórios sagrados, perdessem sua língua materna e ressignificassem suas tradições e costumes. Os povos indígenas não deixaram a sua cultura. Eles foram obrigados a seguir um padrão de cultura que se diz “civilizado”. Os danos causados às populações indígenas do Brasil são irreparáveis.

Porém, a Constituição Federal de 1988 eliminou todo e qualquer tipo de ideal e segmento desta política integracionista perversa. Rompeu com o paradigma assimilacionista e reconheceu, pontualmente nos artigos 231 e 232, os direitos dos povos indígenas, abolindo a tutela.


Assistimos, nos últimos anos, a um retrocesso das políticas indigenistas e a um apagamento e negação dos direitos conquistados pelos povos indígenas do Brasil. Estima-se que aproximadamente 13% do território brasileiro seja terra indígena, isso faz com que a estrutura agrária seja modificada de modo que, nos últimos anos, se intensificaram pressões de grupos ruralistas para paralisar os trabalhos de demarcação de Territórios Indígenas (TI). E, ainda, ações que buscam retirar da população indígena a gerência dos recursos naturais das terras já demarcadas.


O caso do povo Xogleng, que está no Supremo Tribunal Federal (STF), tem sido tratado como o julgamento do século para os povos originários de todo o país, pois a decisão sobre a validade ou não da tese do “Marco Temporal” terá repercussão geral, o que significa que, dali em diante, será obrigatoriamente aplicada em todos os casos similares. A Advocacia Geral da União (AGU), por um lado, fala que a questão de demarcação de terra deve ser decidida pelo Congresso Nacional. Por outro lado, os advogados e representantes da população indígena sustentam que a tese do Marco Temporal é inconstitucional.


Dinamam Tuxá, coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), explica que essa tese do Marco Temporal fere frontalmente o texto constitucional e, evidentemente, se por ventura o STF der um procedente favorável a essa tese, além dos retrocessos que haverá no âmbito da nossa democracia e da nossa legislação, também acarretará em uma série de revisão de territórios já demarcados, o que gerará uma insegurança jurídica nos territórios demarcados desde 1988, como também uma enxurrada de reintegração de posses que já estão em tramitação, inclusive no âmbito dos tribunais regionais.


O julgamento da tese do Marco Temporal no STF, inicialmente previsto para 2020, foi adiado diversas vezes. Em paralelo, corria na Câmera dos Deputados o Projeto de Lei (PL) nº 490 de 2007, que pretende tornar mais difíceis as demarcações de TI utilizando justamente a tese do Marco Temporal.


Para os povos indígenas, vivemos um momento de muita aflição e angústia, pois esse julgamento irá tratar não só do presente, mas também do passado, porque vai tentar apagar todos os esbulhos possessórios que os povos indígenas sofreram, todas as violências que os povos indígenas experimentaram, principalmente no auge da ditadura militar, quando vários povos foram removidos. É preciso lembrar que muitos desses povos sequer foram identificados para análise dessa tese. Essa tese traz no seu arcabouço, a definição de um Marco Temporal de 05 de outubro de 1988 para ter direitos sobre os territórios indígenas, mas esquece e apaga todo histórico de violência praticado contra os povos indígenas muitas vezes pelo próprio estado brasileiro, seja por ação ou por omissão.


Por entender que essa tese é inconstitucional e que, caso aprovada, irá impulsionar conflitos e problemas socioambientais dentro das terras indígenas, os povos indígenas realizaram entre Agosto e Setembro de 2021, o “Acampamento Luta pela Vida”, na Esplanada dos Ministérios. Esse acampamento reuniu mais de 6 mil indígenas de 170 povos de todo o país, a maior mobilização desde a Assembleia da Constituinte.


Como relata Marcos Xucuru: “estamos aqui no acampamento em defesa da vida junto com todos os povos de todas as regiões do país, a luta que se faz necessária, e importante para cada um de nós. Enquanto indígenas temos a grande missão, a grande responsabilidade de salvaguardar esse território que é moradia dos nossos ancestrais e, por isso, a força que vem a cada um de nós nos motiva, é por conta da nossa ancestralidade dos irmãos que já tombaram na luta e que nos alimenta para que tenhamos condições para darmos continuidade a esse projeto de vida que esses povos tem trabalhado em seus territórios, na garantia da sobrevivência física, cultural, que é tão importante para todos nós, porque um dia também, nós, vamos repousar na terra sagrada assim como eles hoje estão repousando e voltam para nos ajudar”.


Para os povos indígenas, a luta pelos seus territórios sagrados é um ato de resistência para existir, pois além de inconstitucional, a tese do Marco Temporal é a tese do genocídio dos povos indígenas. Como diz Amanary Tupinambá, “nesse chão foram plantados sonhos, saberes, e a cultura de um povo guerreiro e forte. Não aceitamos sair da nossa terra. A terra é nossa, que os nossos vêm lutando há mais de 521 anos, a terra é nossa por direito”.


O artigo 231 da Constituição Federal garante aos povos indígenas o direito às terras que ocuparam e ocupam tradicionalmente, desde sempre. Esse direito é anterior até mesmo à própria configuração do Estado Brasileiro. O artigo não estabelece nenhum marco temporal, não diz que eles devem estar aqui ou ali naquela data de 05 de outubro de 1988. Até porque, como os Xokleng de Santa Catarina, muitos povos precisaram fugir da morte durante o processo de invasão branca que, na verdade, nunca acabou no Brasil. Mesmo durante a Assembleia Constituinte não foi fácil obter o avanço das demarcações. Esse direito precisou ter conquistado.


Na data de 09 de setembro de 2021, entrou em pauta a votação da tese do Marco Temporal. O ministro e relator Edson Fachin votou contra esta tese e deu seu voto favorável aos povos indígenas. Foi um momento ímpar, porque, para nós indígenas, é bem mais que um voto, é a decisão da nossa existência. Lataniel, indígena do povo Laklãnõ/Xogleng, emocionado retratou a luta do seu pai pelo território Xogleng, e lamentou pelo mesmo não estar mais vivo para presenciar esse momento que considera histórico. Relata, também, sobre o seu bisavô, chamado de Lili, que morreu nas mãos dos bugreiros ao tentar levar uma carta para as autoridades para que não viessem exterminar, não viessem acabar com o povo indígena Laklãnõ/Xogleng. Ele diz que, há cem anos, tentaram acabar com o seu povo, e que esse dia era um momento histórico para ele: “a minha mãe que está aqui comigo, que por muitas vezes viu meu pai sair de casa e vir para esse lugar Brasília, lutar pelos nossos direitos, hoje ele não se encontra, mas a minha mãe está aqui viva do nosso lado, vendo esse momento histórico mais é uma comemoração para nós, uma alegria, ouvir a palavra do Ministro Fachin dando um voto para nós, muita emoção está aqui nesse momento histórico porque tentaram calar a voz do povo Xokleng, tentaram nos exterminar, mas não conseguiram, nós queremos as nossas terras, queremos o que é nosso, não queremos nada dos outros, queremos só o que é nosso, o nosso direito, a nossa terra aonde nós moramos, aonde nós estamos no dia de hoje”.


A continuidade da votação da tese do Marco Temporal traz aos povos indígenas uma perspectiva bastante esperançosa, avaliando que os ministros da Suprema Corte irão ser favoráveis às causas indígenas contra o “marco temporal”, tendo em vista que eles são os guardiões da nossa Constituição Federal.


No dia 15 de setembro de 2021, na sexta sessão do julgamento da tese do Marco Temporal, o Ministro Nunes Marques votou a favor da manutenção da tese e o ministro Alexandre Moraes fez o pedido de vista, suspendendo assim o julgamento. Isso pode dar margem para que o poder legislativo, os deputados e senadores, para que possam acelerar a tramitação do PL 490, já que o STF ainda não finalizou a decisão sobre o “marco temporal”. O debate que está dado hoje no Congresso Nacional não é um debate que se dá em termos constitucionais e a questão do “marco temporal” não é possível de ser estabelecida em lei. A Constituição é muita clara quando diz que os povos indígenas têm direito às suas terras ocupadas tradicionalmente, nenhuma legislação pode contrariar a Constituição.


O papel do STF é proteger a Constituição, não é dar espaço para o Congresso Nacional erodir os direitos indígenas e não é amenizar conflitos com o Poder Executivo se este estiver também contra os povos indígenas. O papel do STF, dado pela Constituição, é garantir os direitos dos povos indígenas e garantir o acesso e permanência em suas terras com segurança.


Nós, povos indígenas, continuaremos mobilizados em todo território nacional, na resistência da luta pela garantia dos nossos direitos, esperançosos que a decisão será a favor dos povos indígenas, a favor da vida, do meio ambiente, e a favor dos pretextos constitucionais, porque também, de certa forma, essa decisão irá fortalecer a nossa democracia.


O povo brasileiro precisa compreender que essa luta não é só dos povos indígenas do Brasil, mas de todos. A nossa luta é pelos nossos territórios, mas também por toda a humanidade, pois 80 % da biodiversidade do mundo hoje se encontra dentro das terras indígenas e representamos menos de 5% da população mundial. Nossa contribuição para humanidade é de suma importância. Entendemos que essa tese, além de ser inconstitucional, irá insuflar mais conflitos socioambientais e, consequentemente, potencializar o desmatamento, as inflações e os crimes ambientais. Acreditamos que o STF está ciente de todo o retrocesso que haverá se, porventura, essa tese for aprovada. O direito dos povos indígenas tem que ser assegurado. Esse processo deverá conduzir todos os processos de demarcações das terras indígenas e as políticas indigenistas e ambientais acabarão sendo atingidas caso essa decisão seja contrária ao direito dos povos indígenas.


Sobre os autores:

Juliana dos Santos Santana, meu nome étnico Amanayara, liderança indígena do povo Tupinambá de Olivença, da Aldeia Mãe, localizada na Terra Indígena Tupinambá de Olivença-BA. Educadora indígena, geógrafa, pedagoga, mestranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UnB, Pesquisadora do Projeto de Ampliação do Centro de Referência Virtual Indígena do Armazém Memória e do Observatório dos Direitos e Políticas Indigenistas (OBIND) da UnB. Assessora de comunicação da Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (APOINME), Diretora do Departamento de Mulheres e Infantojuvenil do MUPOIBA- Movimento Unido dos Povos e Organizações Indígenas da Bahia.


Dinamam Tuxá é formado em direito, mestre em Sustentabilidade junto a Povos e Territórios Tradicionais (MESPT/UnB) e doutorando em Direito na UnB. É indígena do povo Tuxá (BA) advogado e Coordenador Executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e da APOINME.

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