Convidamos a Barbara Ramos Pinheiro para contar mais sobre sua história. A partir do seu questionamento aberto aqui no blog " Quantas mergulhadoras negras somos?" queremos compartilhar esta historia de vida cheia de garra contada em primeira pessoa.
Bióloga, Especialista em gestão de ambientes costeiros tropicais, Mestre e doutora em Oceanografia pela Universidade Federal de Pernambuco. Atualmente bolsista de pós-doutorado, gerente de projetos do Laboratório de Conservação no Século 21 (@lacos21) da UFAL e Diretora Executiva do Instituto Ayni de conservação ambiental e desenvolvimento social (@institutoayni)
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Nasci em Recife, mas passei grande parte da minha infância e juventude morando em Olinda. Minha identidade social é preta, embora na minha certidão de nascimento conste cor parda, cresci sendo chamada ao som de “preta, preta, pretinha” e toda vez que ouvia Moraes
Moreira cantando tinha certeza que era pra mim :). A mistura de raças na minha família, como na de todos os brasileiros é enorme, e o fato de eu ter uma pele não tão escura, cabelos menos cacheados, e ter tido acesso a educação de qualidade, me colocou num local mais “branco” e eu entendo que infelizmente isso faz diferença, na forma de como eu sou mais facilmente aceita. Não lembro de ter sofrido na infância por conta da minha cor, nessa época pesava mais ter um pai ausente e pouca grana, mas o amor e o suporte da minha mãe e dos meus avós maternos e paternos sempre me preencheram. É bem verdade que se eu puxar pela memória, eu, minha irmã e meus primos éramos sempre os mais pretos da classe ou da rua, uns mais, outros menos. Porém nessa época nós tínhamos bolsas de estudo parcial em colégios particulares do bairro, e isso fazia diferença. Ter passado a estudar numa escola pública de referência na adolescência também facilitou muito a questão racial. Fiz o curso técnico em química industrial no CEFET-PE. Sei que ter amigos de todas as raças e classes sociais compartilhando experiências fez toda a diferença na minha formação. Fui observando e vivendo as desigualdades de uma forma muito natural. Um fim de semana íamos fazer trabalho em equipe na casa do “galego” no outro tinha pagode na casa do “negão”, todos sempre juntos e misturados, amor pra vida inteira e histórias que nos fazem rir até hoje em dia! Lembro que eu e outra amiga perdemos algumas dessas “farras” pois começamos a trabalhar cedo… 16 anos… eu trabalhava de atendente na loja de uns amigos da minha mãe e minha amiga na pizza hut… além de melhores amigas, compartilhamos a necessidade de ajudar nossas mães... se não com dinheiro para as contas em geral, pelo menos já podendo arcar com as nossas pequenas despesas pessoais. Mas foi no final do curso que senti pela primeira vez o peso de ser mulher. Não adiantava ter notas melhores nas disciplinas, na hora de procurar o estágio nas indústrias só os meninos ficavam. Ou só as amigas cujo os pais conheciam alguém e conseguiam trabalhar num laboratório da indústria, geralmente controle de qualidade de água, mas nunca em esquema de escala de turnos.
Os estágios para as meninas eram certamente para farmácia de manipulação ou para os laboratórios de análise de qualidade de bebidas e alimentos do ministério. Mas vocês perguntam, e isso era ruim?? Não claro que não… minha pele nunca foi tão macia quanto na época que eu trabalhava fazendo cosméticos nas farmácias de manipulação hehehe....Mas contei esse fato porque marcou… primeira vez que sofri algum preconceito profissionalmente por ser mulher, senti que não tinha direito de escolha e ouvir de funcionários da escola que esse “padrão dos estágios” era normal, foi pesado. Mas segue o baile!
Entrei no curso de bacharelado em ciências biológicas da Universidade Federal de Pernambuco, e logo no começo tinha que procurar estágio né… afinal como pagar as “xerox” dos livros que não estavam disponíveis na biblioteca??
E voltando a observar os padrões… estágios para ecologia com o professor fera que veio do sul ou sudeste? Os homens tinham preferência, afinal, se aventurar nos remanescentes de mata atlântica da região para fazer as pesquisas não era para mulheres… nós íamos só para as aulas de campo e basta. E quando finalmente aparecia um professor que levava a turma toda por uma excursão de 3 ou mais dias… vez por outra no final surgiam histórias de assédio. E então, pra onde a gente ia? Fauna carismática!! Golfinhos, tartarugas e Peixes-bois!! E lá vamos todas nós lutar por estágios com esses animais fofinhos! Lutar, mesmo.. .guerra para conseguir uma bolsa de iniciação científica… todas as meninas e muitos meninos também, afinal para os homens não tem isso de que só mulheres trabalham com animais fofinhos, né? homem branco pode escolher o que quer!
Eis então que ainda no segundo período eu vi um anúncio de uma vaga para estágio com uma professora que trabalhava com Cnidários e procurava um (a) aluno (a) para um projeto com análises de proteínas. Eu, já formada técnica em química, sorri ao ver aquela oportunidade. Fui fazer a entrevista, e me deparei com uma grande coincidência… tem um lugar que eu costumava ir nadar quando criança e adolescente durante as férias na casa dos meus padrinhos em Tamandaré, o poço da Elga, que foi batizado com esse nome pelos pescadores que contavam a historia pra gente de uma professora que ia sempre lá fazer coleta… adivinha quem era a professora que estava oferecendo o estágio?
Resumindo, três anos de iniciação científica com a Dra. Elga Maÿal, aprendendo sobre os ambientes recifais brasileiros. Desafios desse período? - dinamitaram minha área de coleta no recife de arenito de Suape para uma obra de ampliação do porto durante o período de estudo, e não tive direito a voz na reunião com a administração para contestar isso, e Elga já cansada de saber como funcionava o sistema nem se deu ao trabalho de discutir…
Mudamos o projeto na correria e seguimos a luta! Não tive grana para fazer curso de mergulho nos primeiros dois anos de estágio, e só consegui fazer o curso básico por conta de uma verba de projeto. No início ia para campo mergulhar só de apnéia e dependia sempre de um colega com certificado para fazer as coletas com o scuba para mim. E se eu pensava que ter uma orientadora mulher iria me ajudar a crescer na carreira, ou mesmo só uma empatia, foi na verdade bem difícil ouvir certas comparações que ela fazia com outros alunos que tinham condições para fazer o curso ou carro próprio para fazer coleta! Era tudo tão difícil que no meu TCC escolhi trabalhar com material já coletado fazendo análises geoquímicas (isótopos estáveis de carbono e oxigênio no esqueleto dos corais) porque seria mais tranquilo. E foi. Hoje eu percebo que embora não tenha sido ostensivamente massacrada, fui preterida de muitas coisas.…. cenas dos próximos capítulos!
Nota da editora Paulina Chamorro: Obrigada Barbara pelo seu relato. Esperamos que estes sejam os primeiros capítulos de uma importante e necessária discussão. E que teu depoimento sirva de inspiração a muitas mulheres e jovens que sonham com o mar. <3
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